Quando nós adormecemos juntos

Milan Kundera disse em seu “A Insustentável Leveza do ser” que o sono compartilhado é o corpo de delito do amor. E ele tinha razão, sabe? Pouso minha mãozinha sobre o seu rosto macio e sinto o calor radiante que dele emana, rosto de mãe que me ama, que me cuida, que vive por mim. Vou adormecendo devagarzinho pensando nas minhas aventuras imaginárias colossais, meus castelos, meus príncipes, meus medos e minhas delícias. Bochecha de mãe é sempre macia, bochecha de beijar com beijo estalado ou com beijinhos repetidos em sequência sem fim, beijinhos pequenininhos mil, dados todos num minuto só. Nós aqui deitadas na cama gostosa, uma de frente para outra, partilhando o quentinho desta manta, enquanto os sonhos se apoderam da nossa consciência.

Sinto seu perfume, mãe. Ele está no seu pijama e no travesseiro que eu te roubo noite adentro para abraçar de supetão. Só você tem esse cheiro. É um cheiro bom, de coisa nossa, que me lembra quem eu sou. De onde vim, não sei bem, mas sei aonde cheguei para ficar: ao seu lado, na partilha preguiçosa desta madrugada, em que minha mão toca seu rosto para verificar que você está aí e que me protege. É a certeza de que há adultos em que se possa confiar, mãe. Há adultos que se pode amar sem contraindicação.

Mãe, você já viu como fica bonito quando em coloco a mão no seu rosto? Minha mão mulata, com um toque qualquer de África, sobre seu rosto branquinho, de cachopa de além-mar, formando um contraste bem brasileiro: é um verdadeiro dégradé de amor. De todas as raças existentes, somos nós da raça humana, a raça que abraça, que acaricia, que beija, que ama. Somos, mamãe, a raça da raça humana.

Sei bem que você está cansada! Trabalhou pra burro, lutou pelos seus ideais (que devem ser sublimes, mãe!), deu conta de tudo. Chegou esbaforida e tomou um banho morninho. Agora já dorme, depressa, sem cerimônia! Eu ainda demoro um pouquinho, sabe? Fico te olhando dormir, bem de pertinho, sentindo a pele de papiro do seu rosto, no aconchego desta coberta. Fecho meus olhinhos na certeza do seu zelo, criança segura si, criança segura de ti.

Ainda bem que eu te encontrei, mãe! Acho que sua vida ia ser uma chatura se eu não tivesse aparecido. Não sei bem como foi, porque o que é perfeito sempre vem por atalhos. Mas sei que eu te dou motivo para dormir a acordar. Eu também fiquei feliz: seu colo foi feito para mim, seus olhos sorriem para mim, sua boca pronuncia com frequência que me ama. Isso é muito bom, mãe! Mas eu prefiro quando você me beija e quando traz chocolate.

Agora já estou com muito sono. Tem um garoto na escola que eu acho bonito, mas não sei se te conto. Depois eu vejo isso. Aqui nessa caminha macia do seu quarto me sinto muito segura, nada me incomoda. Você, mãe, pertence a mim: uns anjinhos providenciaram esse nosso encontro, cada um com uma tarefinha. Hoje eles estão aqui em volta, acampados em cabaninhas de lençol, para cantar as canções mais bonitas, daquelas que nos fazem sorrir. Vou dormir agora, mamãe, pois há muitos sonhos a viver, tá? Te amo.

Sávio Bittencourt

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